Avançar para o conteúdo principal

Dizer trevas

Como Orfeu, toco
a morte nas cordas da vida
e à beleza do mundo
e dos teus olhos que regem o céu
só sei dizer trevas.
Não te esqueças que também tu, subitamente,
naquela manhã, quando o teu leito
estava ainda húmido de orvalho e o cravo
dormia no teu coração,
viste o rio negro
passar por ti.
Com a corda do silêncio
tensa sobre a onda de sangue,
dedilhei o teu coração vibrante.
A tua madeixa transformou-se
na cabeleira de sombras da noite,
os flocos negros da escuridão
nevavam sobre o teu rosto.
E eu não te pertenço.
Ambos nos lamentamos agora.
Mas, como Orfeu, sei
a vida ao lado da morte,
e revejo-me no azul
dos teus olhos fechados para sempre.

Ingeborg Bachmann, O tempo Aprazado


Foto de Maria João Alves




Comentários

Mensagens populares deste blogue

A velocidade da Luz

Há uma rotação do teu corpo – Andas pela casa: és um leve rumor sob o silêncio um rumor que alumia a sombra silenciosa; na sala , o homem quase surdo quase cego ouve-te, julga reconhecer-te: vens aí. Estás aqui. O intervalo de tempo já começou: há uma rotação no teu corpo que me exclui do mundo e entretanto é feita para mim; atinge-me à velocidade da luz. E eu o homem quase surdo quase cego sou tomado pelo vento do fogo que me consome até ser apenas a última brasa: pequenas ravinas de luz o incêndio restante sob a exausta crosta da terra Estavas, estiveste ali. O tempo recomeça. Apareces e desapareces. Como a luz do farol disparando no céu sobre as casas ou como o anúncio luminoso do prédio em frente que varre intermitente a obscuridade do quarto no filme. Quando voltará? É como se soubesses que voltará, sim, e que não, não poderá voltar. Quando, e se voltar, serei eu talvez quem já lá não está. Quando é quando? Quanto tempo ainda poderá o mundo voltar à po...

Invisível

Amor. O amor é o invisível no habitual. AGVSTINA BESSA-LUÍS [na primeira pessoa] Dicionário Imperfeito Guimarães Editores ( imagem Maria João Alves)